31 de maio de 2010

Possuir ou ter escoriações?


"De acordo com o soldado, a vítima possui escoriações e hematomas no tórax, abdômen, braços e pernas, mas passa bem. Os criminosos teriam achado que o pintor era um policial disfarçado investigando tráfico de drogas na favela." http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/743653-pintor-e-confundido-com-policial-feito-refem-e-torturado-por-5-horas-na-zona-sul-de-sp.shtml

Pobre dele. Se seu possessor fosse, deles certamente optaria livrar-se. Mas as têm, as escoriações.

21 de maio de 2010

Cooperativismo no RS: algumas dimensões históricas (História)

Artigo sociológico e histórico do Prof. Dr. Telmo Rudi Frantz (Unijuí),
gentilmente cedido para publicação neste blog. 

     Em viagem de férias, tive, mais uma vez, a oportunidade de cruzar as Colônias Italianas e a Região das Hortênsias, fazendo pouso em Cambará do Sul. Depois, descendo a Serra, por Praia Grande, subi o litoral catarinense permanecendo alguns dias na região de Brusque e Blumenau e retornando através dos campos de São Joaquim e Lages.  Fiz o trajeto lentamente, parando e apreciando, além da paisagem, o resultado do trabalho levado a efeito por imigrantes italianos e alemães e tropeiros lusos, ao longo de mais de um século de labuta.  Apesar de se encontrar, por estas paragens, bolsões de pobreza, com famílias em dificuldade econômica, é impossível não se impressionar com a extraordinária dinâmica sócio-econômica visível, particularmente nas regiões que tiveram na agricultura familiar a sua base econômica e sócio-cultural.  O quadro muda quando, deixando as regiões ocupadas e valorizadas com base na pequena propriedade familiar, se ingressa na bela e, aparentemente, vazia região dos Campos de Cima da Serra.  Esta região, como as outras áreas de campo natural no Rio Grande do Sul, foi ocupada mais precocemente, através do sistema das sesmarias e em função da faina com a criação e a comercialização do gado. Consolidou-se aí a grande propriedade pastoril configurando uma região fracamente povoada e bem menos dinâmica do ponto de vista econômico e sócio-cultural.  As mesmas diferenças são visíveis, a olho nu, quando se viaja do Vale do Itajaí, densamente habitado, para os campos de Lages, com suas fazendas dispersas no espaço. Estas diferenças são a expressão dos dois Sistemas Agrários predominantes, historicamente constituídos, no sul do pais, particularmente no Rio Grande do Sul.
O que esta rápida descrição tem a ver com o cooperativismo? Ao chamar a atenção para algumas dimensões históricas do cooperativismo no Rio Grande do Sul, pretendo fazê-lo tendo por pano de fundo as condicionantes que os diferenciados processos de ocupação do espaço gaúcho representaram e ainda expressam.  Elas estão na origem das atuais práticas agrícolas e de seus desdobramentos sócio-econômicos diferenciados; elas condicionaram, fortemente, a dinâmica organizativa das pessoas e grupos envolvidos em cada um destes sistemas agrários.

     Quero explorar a idéia de que a condicionante principal da dinâmica do cooperativismo gaúcho está nas características sócio-culturais dos sistemas agrários e de produção operados pelos sócios efetivos ou potenciais das cooperativas.
     A partir desta idéia básica pode-se analisar e entender melhor as manifestações institucionalizadas do cooperativismo no Estado, principalmente aquelas relacionadas ao processo de produção agropecuário em seu sentido amplo. Ao se estudar a formação histórica do Rio Grande do Sul, levando em consideração as interações da ocupação do espaço com o processo de povoamento, percebe-se um paradoxo: as regiões de mais fácil acesso, as de campo natural, são pouco povoadas e as de mais difícil acesso inicial, como as das matas, são as mais densamente povoadas.  As duas regiões tiveram os seus processos de ocupação defasados temporalmente, iniciando a ocupação das matas (1824) quando as áreas de campo já estavam praticamente todas apropriadas, com exceção da região das Missões.  As duas dinâmicas de povoamento deram origem aos dois sistemas agrários básicos até hoje vigentes no Estado: o pastoril, predominante nas áreas de campo, e o agrícola, predominante nas áreas de mato.  O desenvolvimento de cada um destes sistemas dá-se, de certa forma, autonomamente um em relação ao outro.  Assim sendo, trata-se de sistemas que se originaram cronologicamente defasados e espacialmente justapostos (Bernardes, 1997). Isso ocorreu porque para a elite pastoril, que desde 1734 se apropriara gradativamente do território através da obtenção de sesmarias em troca da ocupação e povoamento dos campos naturais, não havia razões para expandir suas atividades sobre as áreas florestais. Nestas a adequação à pecuária ou à agricultura implicava investimentos superiores aos necessários nas regiões de campo natural onde inicialmente eram quase nulos. Assim sendo, as terras de mato estavam disponíveis para os projetos de colonização no início do século XIX e foram ocupadas por pequenos agricultores que aí desenvolveram um sistema agrário cuja dinâmica não tinha praticamente nenhum vínculo econômico ou sócio-cultural com a pecuária. É, pois, a existência de terras de mato disponíveis que levou os imigrantes a nelas se localizarem. Os estancieiros não se opuseram, pois não precisando de mais trabalhadores, concordaram que os camponeses tivessem acesso à propriedade, desde que esta se localizasse nas áreas que historicamente haviam desprezado para fins de pecuária. Caso tivesse havido, por parte dos estancieiros, interesse em melhorar o manejo de seus campos através da obtenção de forragens e pastagens artificiais, poderiam ter-se interessado pela presença de agricultores em terras de campo.  Estes, sob a modalidade de arrendamento ou outra, poderiam, após um período de produção de grãos, devolver aos estancieiros as áreas cobertas com pastagens artificiais melhoradas. Tal prática ocorreu na Argentina no início do século XIX com a imigração italiana, contribuindo sensivelmente para melhorar a qualidade da alimentação do rebanho daquele país permitindo a introdução de raças melhoradas. Este estado de coisas foi reforçado pelo comportamento do Estado, quando da imigração de agricultores europeus, na medida em que sua intenção era, talvez mais do que a ampliação da produção de alimentos, assegurar a efetiva ocupação das terras de mato. Os conflitos ainda presentes na época, em decorrência da recente conquista militar das Missões por parte dos estancieiros e as dificuldades que a barreira florestal representava para o transporte de gado e de muares, davam sentido a essa preocupação. Assim sendo, mesmo que houvesse, por parte dos estancieiros, interesse na presença de agricultores em suas terras, tal desejo não necessariamente teria sido respaldado pelo Governo através de políticas específicas. Consolidam-se, assim, dois sistemas agrários bem distintos e separados.  Embora houvesse atividades agrícolas nas regiões de campo e atividades pastoris nas regiões de mato, estas não chegaram a constituir-se em componentes indispensáveis ao funcionamento de um ou de outro sistema, mesmo sendo complementares e funcionais.  Foi necessário que transcorressem mais de cem anos para que surgisse, no Planalto, uma integração entre a gricultura e pecuária capaz de assegurar a superposição destas atividades no interior de uma mesma unidade de produção. Estudos recentes realizados pelo Departamento de Estudos Agrários da UNIJUI, constatam que a maior ou menor dinamicidade de um sistema agrário está na dependência do grau e da forma de distribuição do valor agregado gerado na produção agrícola entre os agentes econômicos e sociais envolvidos na cadeia produtiva local.  Em outros termos, significa dizer que, em torno do excedente gerado na agricultura, bem como em função de suas necessidades, podem surgir várias iniciativas que, interagindo, dão origem a uma dinâmica econômica que ultrapassaos exclusivos limites da agricultura, embora dela dependentes.  A agricultura aparece, assim, como estimuladora de outras atividades econômicas em decorrência do consumo de equipamentos, máquinas e insumos necessários ao processo produtivo agrícola. Além disso, a agricultura supõe o transporte, a comercialização e a transformação dos seus produtos, dando origem a um setor “para-agrícola”, cujas características dependem do tipo de tecnologia utilizada na agricultura, do tipo de produto nela predominante e do grau de transformação industrial sofrido por estes produtos.

     O que importa reter aqui é a constatação de que o potencial de multiplicação dos efeitos positivos desta dinâmica é maior quando o processo de distribuição do valor agregado for mais democrático.
     Há, assim, sistemas agrários onde o valor agregado é alto, mas, em vista de sua apropriação concentrada, gera baixos efeitos sobre a economia e a sociedade locais, contribuindo pouco para o desenvolvimento local ou regional. O que se percebeu, para o caso específico do Rio Grande do Sul, foi o fato de os sistemas de produção baseados na atividade familiar apresentarem uma maior capacidade de fazer circular amplamente e localmente a renda gerada.  Este fato, dentre outros, explicaria a maior dinamicidades das comunidades das regiões onde se implantou a pequena agricultura familiar.  Esta modalidade de organização, mais democrática em sua base econômica, em decorrência da multiplicação de propriedades de igual tamanho, assegura, de um lado, uma distribuição mais eqüitativa da renda e, de outro lado, a necessidade de mais bens e serviços possíveis de serem produzidos localmente.  Tudo isso origina uma dinâmica econômica intensa de produção manufatureira e industrial e de trocas locais que estão na origem de um processo intenso de urbanização das regiões coloniais e da sua capacidade de gerar riquezas crescentes e que se tornam manifestas e visíveis através de suas cidades, vilas e distritos.  O capital social que aí se implantou ao longo da história está expresso em sua infraestrutura socioeconômica e cultural e é mais rico e diversificado do que o das regiões onde predomina a pecuária extensiva. É compreensível, pois, que comportamentos cooperativos se manifestem mais efetivamente nas regiões onde se desenvolveu um Sistema Agrário baseado na pequena propriedade familiar. Ai a densidade populacional e as atividades produtivas diversificadas foram capazes de gerar demandas locais sem que, com isso, deixassem desvincular-se ao mercado nacional através de um ou outro produto de destaque, qual seja, o vinho e a banha entre os italianos e a banha e o fumo entre os alemães.
     Assim, antes mesmo do surgimento do cooperativismo, formalmente institucionalizado, foram as características de acesso democratizado à propriedade e a conseqüente distribuição mais eqüitativa da renda que geraram comportamentos cooperativos e de solidariedade.
    
Não se trata, portanto, da cooperação como opção ideológica a priori.  Trata-se do fato de se ter criado uma base material que gerava e exigia modalidades de interdependências entre os agricultores e destes com outras pessoas e organizações capazes de responder às suas demandas econômicas, sociais e culturais.  As cooperativas que nascem neste contexto são, portanto, fortemente condicionadas pela base econômica democrática e eqüitativa destas sociedades rurais. Elas expressavam, em si mesmas, através de seu funcionamento, formas organizativas com alto conteúdo cooperativo e solidário. Embora envolvidos na dinâmica da produção de mercado e condicionados pelas políticas estaduais e nacionais, apresentavam uma dinâmica local específica e uma energia endógena suficientemente forte para dar origem às extraordinárias comunidades exemplificadas no início do texto. Em decorrência de tudo o que foi dito até aqui, o cooperativismo - seja ele de crédito, de consumo ou outro - apresenta, nas regiões onde predomina a pequena propriedade familiar, uma maior incidência e maior sucesso do que nas regiões de campo, fracamente povoadas e com dinamismos econômicos locais menores.  Não é por acaso que as ideias cooperativistas encontraram nestas comunidades maior respaldo e impacto. O cuidado que convém ter é o de não querer enquadrar experiências bem sucedidas em esquemas ideológicos pré-fabricados e inadequados a realidade destas comunidades. Tendo em vista a dinâmica mais abrangente da organização econômica e social da vida dos pequenos agricultores tem-se a presença, neste tipo de organização, de uma solidariedade muito forte. Inspirando-nos em Durkheim, poderíamos dizer que, nos primórdios da colonização, esta solidariedade era, em grande parte, do tipo mecânica, porque se originava das grandes semelhanças entre os membros individuais, semelhança identificadora do grupo e baseada numa forte consciência de identidade.  Mas, com o rápido desenvolvimento da agricultura dos colonos e sua inserção no mercado nacional, houve, em seu meio, uma aceleração da divisão de trabalho, com apresença de uma maior diversidade de pessoas e grupos (comerciantes, artesão, industriais etc.), dando origem a um novo tipo de solidariedade, baseado “na complementação de partes diversificadas”, ou seja, a solidariedade orgânica.  Enquanto se identificam como grupo onde predominam as semelhanças no que se refere à propriedade da terra, formas de produzir, tipos de cultura, valores e referências religiosas comuns, fica reforçada a solidariedade mecânica.  Na relação do grupo, assim identificado, com o mercado e seus representantes, cuja dimensão e racionalidade muitas vezes lhes escapam, mas com o qual necessitam transacionar, desenvolve-se a solidariedade orgânica.  Com o tempo, é esta última que se impõe cada vez mais sem que, no entanto, desapareçam totalmente aspectos ou traços da solidariedade original (Lakatos, 1982 : 43).  Numa perspectiva marxista, na qual se sobrepõe o conceito de classe social, se poderia trabalhar com os conceitos de “classe em si” e de “classe para si”.  Com a crescente divisão de trabalho no seio das colônias e ao aparecerem os primeiros sinais de diferenciação social entre o grupo e o enriquecimento, principalmente de comerciantes, os colonos irão, pouco a pouco, perceber-se como um grupo com interesses específicos e muitas vezes antagônicos aos de outros membros da “comunidade” local ou supra-local, desenvolvendo formas de organização para defender seus interesses específicos. Daí surgem as antigas cooperativas mistas - de produção e de consumo que levam o agricultor a organizar-se para escapar ao que entende ser a exploração do comerciante local. Em síntese, os pequenos agricultores proprietários, que, produzindo um valor agregado cuja distribuição é mais equitativa do que a que ocorre em regiões de concentração fundiária, conseguem construir economias locais diversificadas econômica e culturalmente. Esta diferenciação leva à constituição de classes sociais e impõe modalidades de solidariedade orgânica sem que, entre “iguais” desapareça a solidariedade mecânica. Estas economias locais são competitivas e demonstram, ao longo da história, uma grande capacidade de inovação tecnológica. Dão origem a dinâmicas de desenvolvimento local que se baseiam numa convivência em que a solidariedade mecânica e a orgânica se entre cruzam. Estas formas de solidariedade que estão ancoradas numa base material bastante democrática, torna o meio colonial um espaço onde formas de organização solidária formais vicejam com relativa facilidade. Mais recentemente (pós 1960) desenvolvem uma consciência de classe que se expressa através do movimento sindical e de outros movimentos sem que, no entanto, as formas precursoras de solidariedade desapareçam totalmente. Schneider & Konzen (2000) fazem referência a três elementos ou dimensões que devem ser destacados ao se analisar a genealogia do cooperativismo agrícola no Estado. A primeira dimensão refere-se à “reação dos colonos ao controle dos intermediários, principais agentes de acumulação e representantes do capital mercantil nas colônias, contra as fraudes de comercialização e a conseqüente desvalorização dos produtos coloniais nos centros urbanos” (Schneider & Konzen, 2000 : 9). O segundo aspecto destaca a “experiência e ideologia cooperativista” que os pioneiros Pe.  Amstad e Dr.Paterno “ajudaram a transplantar de Europa para as regiões de colonização ítalo-germânica” (Schneider & Konzen,2000 : 9). O terceiro elemento genealógico refere-se à ação do Estado enquanto estimulador da organização cooperativa. Estas três dimensões, constantemente presentes em todas as etapas do desenvolvimento do cooperativismo no Rio Grande do Sul, adquirem, nos cenários da pequena agricultura familiar, características específicas em suas distintas fases. Assim, quando em 1900 o Pe. Amstad promove a fundação da primeira Associação de Agricultores e a subseqüente criação de várias cooperativas de crédito, ele o faz, como bem lembram Schneider & Konzen (2000 : 4), sustentando-se na identidade e na solidariedade religiosas.  Embora as dificuldades econômicas fossem a maior razão, era necessário consolidar a iniciativa fazendo apelo a certos aspectos da solidariedade mecânica presente na vida cotidiana dos agricultores. Alguns princípios do cooperativismo, como, por exemplo, o de cada associado ter direito a um voto, independentemente de sua capacidade de poupança, correspondia fortemente à experiência de vidados colonos nas suas relações internas enquanto grupo de “iguais”. É preciso destacar, embora pareça óbvio, que a criação de cooperativas de crédito e sua multiplicação pelo Estado mostra que as colônias geravam um excedente importante. No entanto, grande parte do mesmo terminava por concentrar-se nas mãos do comércio intermediador. Esta relação, prejudicial ao colono, foi detalhadamente analisada por Pesavento (1983).  Por outro lado, convém relembrar que o desenvolvimento do comércio e da indústria, nas regiões de pequenos agricultores, foi um fato de extrema importância para dar origem às comunidades economicamente diversificadas e relativamente ricas de várias das regiões coloniais. Embora o comércio e a indústria tenham conseguido realizar uma acumulação mais significativa que os colonos, e muitas vezes às custas deles, o fato de se desenvolver localmente, enquanto assegurava uma relação com o mercado mais amplo, tornou as regiões de colonização bem mais pujantes do que as relacionadas ao Sistema Agrário pastoril do Rio Grande do Sul. Tendo em vista a “perenidade” das relações contraditórias entre colonos, comerciantes e industriais, era de se esperar que o cooperativismo tivesse um ritmo de crescimento constante.  Não foi o que ocorreu. Segundo Pesavento (1983), o que ocorreu ao longo de século XX foi o crescimento por surtos que correspondem aos anos 1911, 1929, 1957.  Estes surtos ocorrem quando há problemas com o mercado dos produtos que são predominantes nas colônias e estratégicos para o Estado.  Em 1911 e em 1929, por exemplo, há sérias dificuldades para colocar o vinho gaúcho no mercado nacional.  Foram dificuldades que tanto afetaram os agricultores quanto os comerciantes locais, embora estes tivessem alguns mecanismos de defesa a mais do que os colonos. É também nesses momentos que se destaca mais fortemente a ação do Estado no apoio ao cooperativismo.  Este se preocupa na medida em que a redução do valor das vendas dos produtos coloniais passa a afetar a arrecadação de impostos. Além disso, essas crises conseguiam assegurar alguns apoios novos e até surpreendentes à criação de cooperativas.  No caso específico da crise do vinho em 1911,
“o movimento cooperativista contou com a iniciativa do Ministro da Agricultura e Comércio, Pedro de Toledo, que propiciou a vinda da Itália do Dr.  Stefano Paterno,em 1911, a fim de organizar cooperativas de pequenos agricultores. O apoio do Ministério da Agricultura e Comércio, assim como da Sociedade Nacional da Agricultura, onde se faziam presente os interesses do café, deve ser entendido à luz da preocupação do centro na divisão nacional do trabalho, ou seja, na viabilização do Rio Grande como “celeiro do país”, especializado na produção de gêneros de subsistência para o núcleo central de exportação. No plano regional, o movimento cooperativista teveo apoio do presidente do Estado (na ocasião Carlos Barbosa Gonçalves), do chefedo PRR (Borges de Medeiros), da Associação Rural de Pelotas e do Centro Econômico do Rio Grande do Sul, entidade que englobava pecuaristas e comerciantes e que, notoriamente defendia os interesses do capital.  Através de lei 103 de  19/12/1911, o governo estadual isentou as cooperativas de impostos territoriais, industriais e de exportação, além de estabelecer prêmios para estimular o aumento da produção” (Pesavento, 1983 ; 38).
     Como se pode perceber, o apoio dava-se na medida em que mais interesses  estavam em jogo. Mas na seqüência sabe-se, também, que foram algumas destas razões, principalmente as de ordem política, que inviabilizarama  permanência, por exemplo, do Dr. Paterno no Rio Grande do Sul, após 1916.     Na crise de 1929, a ação do Governo, principalmente a do federal, não foi tão incisiva. O Governo gaúcho apoiava a criação de cooperativas na medida em que as mesmas contribuíssem para melhorar a qualidade do vinho, exigindo a introdução de melhoras técnicas tanto na produção da uva quanto na fabricação do vinho. Outros exemplos poderiam ser citados para chamar a atenção ao fato de que os surtos cooperativistas ocorreram por ocasião da crise de determinados produtos quando, então, o Estado passa a ter uma atuação mais efetiva. Assim, poder-se-ia analisar o caso do surgimento das cooperativas tritícolas, em 1957, no bojo de uma crise na produção e no mercado do trigo.  Foi o decisivo apoio do Governo Federal à criação de cooperativas que assegurassem a comercialização do produto, que esteve na base daquele movimento (Frantz, 1982). Lideranças religiosas estiveram presentes em muitas iniciativas cooperativas ao longo do século XX.  O seu papel, enquanto catalisadores de iniciativas que visavam institucionalizar aspectos da solidariedade vivida pelos colonos, foi importante.  Não só o foi na medida em que havia um reforço recíproco entre religiosidade, solidariedade e cooperativismo, mas também porque estas iniciativas contribuíram para que houvesse uma melhora na distribuição localdo excedente gerado pela agricultura. Diante de tudo que foi dito até aqui, podemos concluir dizendo que a dinâmica do cooperativismo agrícola no Rio Grande do Sul sempre foi mais forte e significativa nas regiões onde predominou a pequena propriedade familiar. Isso ocorreu porque a base material desta modalidade de produção e organização social assegurava uma apropriação mais eqüitativa da renda agrícola dando origem a dinâmicas econômicas de crescimento constante, como se pode observar pela evolução histórica das cidades destas regiões.  Além disso, essa base democrática e eqüitativa permitiu o desenvolvimento de comportamentos de maior solidariedade os quais eram favoráveis ao sucessodos empreendimentos cooperativos.     Apesar disso o cooperativismo gaúcho não teve um desenvolvimento persistente e continuado através do tempo. Deu-se por surtos decorrentes, em geral, da crise de mercado dos principais produtos agrícolas de um determinado Sistema Agrário. Finalmente, a ação de apoio ao cooperativismo por parte do Estado tem sido mais efetiva quando produtos de seu interesse estratégico se defrontavam com dificuldades de mercado.  Fora isso, os produtores necessitavam ancorar-se em suas próprias energias e recursos.  Isso significa dizer que, na maior parte do tempo, não convém esperar ações efetivas de apoio do Estado.

BIBLIOGRAFIA
BERNARDES, N.  Bases geográficas do Povoamento do Rio Grande do Sul.  Ed.  UNIJUI, Ijuí, 1997.
FRANTZ, Telmo Rudi.  Cooperativismo empresarial e desenvolvimento agrícola.  Petrópolis, Vozes, 1983.
LAKATOS, Eva Maria.  Sociologia geral.  São Paulo, Atlas, 1982.
PESAVENTO, Sandra Jathay.  RS: agropecuária colonial & industrialização.  Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983.
SCHNEIDER, José Odelso; KONZEN, Otto Guilherme.  100 anos de cooperativismo no Rio Grande do Sul.  100 anos de experiência solidária.  In: Relatório do I Congresso Gaúcho de Cooperativismo e de Associativismo e dos Atos Comemorativos dos 100 Anos do Associativismo Rural.  Nova Petrópolis, OCERGS, out.  2000.

17 de maio de 2010

O abuso é justamente também um vício

     À grande jornada do anual Dia das Igrejas Evangélicas na Alemanha o Papa Bento dirigiu mensagem a respeito dos abusos afirmando que “as ervas daninhas estão justamente também em meio à Igreja e entre aqueles que Deus colocou especialmente a seu serviço.”
     Justamente também é uma mania alemã de neutralizar uma afirmação em si clara. Justamente significa exatamente. E também é um oposto – o até. Assim ambos se neutralizam e dão no que dão: imprecisão na aparente clareza.
     Disso os teutos não tomarão conhecimento, pois é justamente também seu vício.

Amorim, o que está fazendo com nosso Lula? (comentário)


     Negociações de 18 horas com representantes do notório Estado teocrático Irã, Amorim e Lula celebrando um acordo qual gol na rede da Agência Internacional de Energia Atômica, e o colega teocrata o desfazendo em público ao afirmar que seu país seguirá enriquecendo urânio a 20% "em seu território", o que põe em dúvida o objetivo puramente civil do programa nuclear de Teerã.
     Somente em copa do mundo o Brasil levou tantos gols quanto a diplomacia brasileira neste período Amorim. Encontra-se na rubra rede brasiliense ainda a rasteira bola hondurenha; a venezuelana está a caminho no canto esquerdo, e no canto direito esconde-se a de Copenhague, sequer percebida.
     Está na hora de trocar o pior goleiro do Brasil, escalado pelo técnico, é claro.

16 de maio de 2010

Convenção do partido da esquerda alemã PDS (comentário)

     "Temos que descobrir o que nos une", diz um delegado do ocidente alemão após a conveção, acrescentando um alerta: "Senão essa coisa não se sustenta a longo prazo."
     O PDS é uma unificação das esquerdas da Alemanha ocidental e oriental.

11 de maio de 2010

Dócil e arisco (animais)

     Arisco, um gato em hipótese nenhuma terá  a chance de conhecer o amor de um ser humano.
     Dócil, um gato com grande probabilidade terá a oportunidade de conhecer o terror humano.
     Uma hipótese é-lhes comum.


10 de maio de 2010

As cinzas do vulcão (humor)

     "Centenas de brasileiros ficam presos em Lisboa devido às cinzas vulcânicas."
   O que será então na quarta de Cinzas?


8 de maio de 2010

O Brasil vai fugir à confrontação com os crimes da ditadura?

Artigo de autoria de Prof. h. c. Heinz F. Dressel, P. em.,  Nurembergue, Alemanha

    O julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre uma reinterpretação da Lei da Anistia de 1979 - a qualprotege integralmente os respectivos representantes dos governos militares de serem julgados por execuções extrajudiciais, por torturas e por estupros -, este julgamento do STF que tomou lugar no dia 28 de abril 2010 em Brasília, infelizmente indulta e protege àqueles representantes dos governos militares que de maneira maciça cometeram crimes contra a humanidade.
    Fazendo parte do primeiro grupo de pessoas que assinaram o „Apelo ao Supremo Tribunal Federal Não anistie os torturadores", enviado pelo Comitê Contra a Anistia dos Torturadores, observo com estranheza e repúdio a decisão do Supremo, que em última análise absolve os torturadores que andam por aí como qualquer policial ou militar honesto que está cumprindo seu dever de zelar pela observação das leis e pela manutenção da ordem pública no Brasil.
    Engana-se o Supremo, que iguala as vitimas do terror da ditadura aos torturadores. É um equívoco falar numa „bilateralidade" com referência aos dois lados, os torturadores e as vítimas do terror nos porões. Fato é, que o governo militar em 1979 promulgou uma Lei de Anistia que exonerava todos os acusados que cometeram „crimes políticos ou conexo com estes". As violações dos direitos humanos cometidas por agentes de segurança ou outros integrantes dos governos militares foram interpretadas como „atos políticos", coisa injustificável, porque num Estado de direito nunca pode-se classificar prisões e execuções extrajudiciais, torturas, estupros ou desaparecimento „a serviço da Pátria" como „crimes políticos ou conexo com estes",  e os incluir na anistia. É coisa absurdíssima mesmo, que só se explica refletindo sobre os motivos de tal  argumentação. Quem sabe, a razão do julgamento era a mesma que valeu na elaboração da lei de1979: a „pacificação do País".
     Sem dúvida passaram-se desde os tempos da ditadura já umas décadas; por isso vale lembrar os fatos básicos do assunto em disputa. Foi Dom Hélder Câmara quem disse que a violência dos terroristas de esquerda era a de número 2, derivada da violência número 1, ou seja, a deposição de Jango. As hostilidades foram iniciadas pelos militares, que passaram a prender e a torturar, comprovadamente já nos primeiros dias da "revolução salvadora", como costumaram chamar o movimento dos generais que assaltaram o Poder.
     Os que se envolveram na luta contra a ditadura, contra os torturadores e seus mandantes, estavam apenas reagindo à violência. Atiraram depois; os que foram absurdamente chamados guerrilheiros e até de terroristas, agiram e reagiram em legítima defesa.
    Não foi como o ex-ministo dos generais (Educação e Justiça), Jarbas Passarinho, me quis fazer crer quando me escrevia numa carta datada de 16 de dezembro de 1996, ao responder uma carta tipo resenha da interessantíssima biografia dele, que lhe havia enviado no dia 13.11.1996. “Não sei se o senhor conhece o livro: 'A esquerda armada no Brasil', premiado em Cuba e escrito apartir de depoimentos de guerrilheiros e terroristas de filiação comunista. Publicado em 1973, nele se contam as ações de assassinato denominadas „justiçamento", como as do capitão americano Chandler, sob pretexto de ter lutado contra o povo vietnamita e ser „agente do CIA"; do empresário Boilensen; e do major alemão, aluno da Escola de Estado Maior do Exército brasileiro, "justiçado" por engano, tomado que foi pelo capitão boliviano Gary Prado, que prendera Che Guevara. Tudo é revelado com orgulho pelos depoentes!"
     Quem iniciou a violência nos dias da páscoa em 1964 não foram os ditos “terroristas de filiação comunista", como hoje em dia alegam os militares; muito pelo contrário, foram os adeptos da "revolução democrática", como consta o caso do famoso Gregório Bezerra, que no dia 1º de abril encontrava-se no caminho do sertão pernambucano rumo ao Recife. Ao ter chegado na usina Pedrosa em Ribeirão, ele foi preso por um capitão da PM. Na viagem ao Recife encontraram um destacamento do Exército acompanhado por um bando de pistoleiros, enviados pelo proprietário do latifúndio Estreliana para matar o Gregório. Ocorreu uma disputa acerca do procedimento mais razoável: matar o preso na hora mesmo ou mais tarde? Resolveu-se levá-lo a Ribeirão. Chegado lá, amarraram o homem e o jogaram num veículo do Exército. No Recife o entregaram às mãos do general Justino Alves Bastos, comandante do IV. Exército. De lá o levaram ao quartel da Companhia de Motomecanização. Imediatamente o comandante, tenente-coronel Darcy Villocq Viana, junto com uma turma de soldados, o agrediu, batendo nele fortemente com seus fuzis, não poupando ponta pés. Acontece que entre os presos que juntamente com Gregório deram entrada havia também um médico, ao qual deram ordem de limpar o homem do sangue que correu fortemente. Este médico utilizou sua própria camisa para tratar os ferimentos do Gregório. Enquanto o médico se ocupava do Gregório Bezerra, por incrível que pareça, o tenente-coronel tentou induzir uma barra de ferro no ânus dum preso seminu. Isso aconteceu no primeiro dia do mês de abril, e nenhum dos presos que passaram tais crueldades foi um „terrorista", e nem se fala num "torturador".
    Não faz mais o mínimo sentido falar de „bilateralidade", como o está fazendo o Supremo! A tortura tornou-se instrumento exclusivo das forças de segurança (que contradição!) da ditadura. Vejam a tragédia no Nordeste: „Nos porões dos quartéis dominados pelos criminosos, mas também nas principais ruas doRecife, com prisioneiros sendo „passeados à vista de todos, e relembre-se, amarrados pelo pescoço", diz Helio Fernandes. Também a „via crucis" do Gregório o levou pelas ruas da cidade. Num cenário macabro, envolto de uma multidão estarrecida na „Praça Burle Marx", como o lugar se chama hoje, em frente à igreja do bairro de Casa Forte, perante um número de instalações da paróquia, inclusive um colégio de freiras, o comandante do destacamento militar gritou: „Venham todos e olhem como se enforca o comunista Gregório Bezerra!" A madre superiora do colégio assistiu com horror o cenário bárbaro lá embaixo; quando suas alunas, cheias de medo, observaram tudo pelas janelas, pegou o telefone e avisou o bispo, que imediatamente alarmou a hierarquia militar. "No último momento apareceu o coronel Ibiapina e parou as bestialidades que horrorizaram todos os moradores", contou Paulo Cavalcanti. Sargento Gregório foi condenado a muitos anos de prisão, mas antes, junto com outros 69 presos políticos do governo brasileiro, foi trocado contra o embaixador da Suíça, Giovanni Enrico Bucher, sequestrado por guerrilhas urbanas, e levado ao Chile.
     O terror no Nordeste, produzido por elementos pertencentes ao IV. Exército, chegou a tamanha extensão que o presidente Castelo Branco teve que enviar o general Ernesto Geisel, chefe da casa militar, a Pernambuco para investigar a situação devido às reclamações de todos os lados. O relatório de Geisel existe, mas faz parte dos documentos que estão sendo tratados como segredo de Estado para o cidadão brasileiro não olhar.
     Dói falar sobre a tortura „ou conexo com esta".
    Notei isso quando, na ocasião de uma visita a sua casa, no dia 30.8.2007, conversei com o ex-ministro dos generais, Jarbas Passarinho. Referindo-me à biografia dele, chamei atenção ao fato de que, quando há 35 anos o visitei no ministério de educação na capital, não havia deixado de fazer uma observação a respeito das coisas ocorridas „nos porões" das Forças Armadas. Ele repetiu a resposta que havia-me dado naquela ocasião: „Estou certo de que os senhores realmente ouviram muito mais sobre o terror clandestino nos porões da polícia ou nos recintos de certos quartéis do que nós ministros civis dos governos dos generais."
     Lembrei que o ministro Passarinho naquela vez, em 1972, havia sido o único representante do Governo militar que deixou passar a palavra „tortura" por seus lábios apesar de que ele diminuiu a admissão da existência da tortura pelo termo „não sistemática"...
     Após esta reminiscência, Jarbas falou por mais tempo sobre o tópico da tortura, destacando que ele, também como membro do Exército em função de oficial de reserva, rejeitava a tortura. Aí ele mencionou um caso de tortura que havia provocado sua imediata reação bastante enérgica. Nesse contexto ele mencionou o general Frota, que sem dúvida se inclinava à direita, mas que era rigorosamente contra a tortura. Jarbas contou com orgulho que durante seu mandato de governador do Estado do Pará não havia sido necessário prender nenhuma pessoa por causa do uso da tortura.
     Mas ..., ao disputir sobre certos métodos da tortura, através dos quais, pelas circunstâncias dentro de um prazo muito curto, poder-se-ia receber informações essenciais de natureza militar - como havia sido com os franceses na Argélia - nestas condições o sofrimento de uma só pessoa poderia ser aceitável para salvar a vida de muitas outras pessoas. Poderia se dizer que esse sofrimento seria apenas um sofrimento menos grave, como no dentista, que tira um dente sem anestesia alguma; dói na hora, mas a gente esquece logo ... Ouvindo isso, me lembrei do lema do sumo sacerdote Caifas, presidente dos sacerdotes no ano da execução do rebelde Jesus: „É melhor que morra apenas um homem pelo povo,do que deixar que o país todo seja destruído" (João 11,49).
     Mas, não eram dentistas os torturadores, muito pelo contrário, eram monstros que se tornavam poderosos ao maltratar os outros. Suas vítimas eram idealistas, como Jarbas Passarinho admitiu caracterizando-os de „idealistas paradoxalmente materialistas". Foram severamente torturados, mas nunca torturaram ninguém. Convivi durante anos com esta "diáspora" brasileira na Alemanha e na Franca, jovens formidáveis.
     Entre eles Luís Travassos, líder estudantil em São Paulo, como José Serra. Nos anos 1967/68 Luís liderou grandes passeatas, gritando palavras de ordem como „O povo unido jamais será vencido" - a única arma utilizada pelos estudantes rebeldes. Luis foi co-organizador do famoso Congresso da UNE em Ibiúna, onde se reuniram mais de 1.000 estudantes, clandestinamente, como pensaram, mas o SNI estava bem informado. No último dia de seu mandato como presidente da UNE, em 12 de outubro de 1968, Travassos foi preso com 920 estudantes. O rapaz ficou detido durante um ano inteiro. As bestialidades que sofreu esta juventude idealista contou o colega de Luís na direção da UNE, Jean-Marc von der Weid,  também apriosionado, numa entrevista ao epd-Nachrichtenspiegel Nº12 do dia 25.3.71: desde o primeiro dia foram batidos e sistematicamente torturados, houve repetidamente execuções fingidas, os presos foram pendurados pelas pernas e torturados com choques elétricos, e praticou-se o „water boarding" ou quase-afogar das vitimas horrorizadas. Tirar um dente sem anestesia?
     Travassos deixou este inferno criado pelos "órgãos de segurança" depois de um ano, acompanhado de 14 presos políticos, em troca do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, sequestrado por guerrilhas urbanas. Um avião da Força Aérea os levou ao México, "banidos por tempo de vida."
    Seu caminho o levou via México, Cuba e Chile à Alemanha, onde chegou com sua esposa Marejai Lisboa e onde a Obra Ecumênica de Estudos em Bochum os acolheu.
    O histórico da Marijane foi muito cruel também. Junto com a juventude estudantil carioca ela agitou nos primeiros anos depois do golpe, assistindo a passeata em 1968 em que mataram o jovem estudante Edson Luís. Por ordem do serviço de inteligência, a Marina Marijane foi presa no CENIMAR - Centro de Informações da Marinha na Ilha das Flores, onde a tortura era tão brutal que o coração começou a falhar. Demorou um ano e meio até que a moça teve de se apresentar perante um tribunal militar. Apesar de absolvida, ela foi detida de novo em frente à porta do tribunal. Posta em liberdade depois de 20 dias, ficou livre durante 5 dias e de novo entrou no cárcere. Depois de 30 dias foi posta em liberdade. Um advogado da família a buscou, mas no caminho o carro dele foi parado, pegaram a Marijane  e a levaram encapuzada ao centro de tortura do Exército na Tijuca. Afamília conseguiu que ela fosse posta em liberdade depois de três semanas. Aí, no caminho a casa, Marijane resolveu pedir asilo na embaixada chilena, de onde se foi para Santiago. Que odisséia!
    Como é que é possível falar de "bilateralidade" com vistas a estas pessoas que sofreram todo tipo de besteira - inclusive estupro - e que nunca na vida nem tocaram em outra pessoa, como o STF pode colocar estas pessoas do lado dos torturadores?
     Como os ministros do Supremo podem chamar de bilateral a anistia dada a torturadores e a brasileiros que praticaram o "crime" de resistir a esses torturadores?" - perguntou também Helio Fernandes, grande repórter da Tribuna da Imprensa, praticamente liquidada pela ditadura.
    Como é possível comparar monstros como aqueles que despedaçaram o preso Bacuri Eduardo Leite, militante da guerrilha urbana, primeiro cortando-lhe uma orelha, depois tirando-lhe os olhos e arrancando-lhe um braço, destruindo seu corpo, membro por membro - como é possível comparar monstros que fizeram coisa desta com as vitimas que não torturaram ninguém em toda sua vida? Monstros que até esquartejaram os cadáveres de suas vitimas como se fossem bois no matadouro, métodos que se usaram no Centro de Investigação em Petrópolis-RJ.
    Considerando tudo isso, o julgamento do Supremo Tribunal Federal parece ser irracional. Tortura não pode ser considerada função legítima do Estado, não é possível declarar a tortura parte dos deveres dum funcionário público, Tortura é crime contra a dignidade humana e não deve ser anistiada. Se o torturador agiu em nome do Estado, deve ser responsabilizado até o governo, como neste meio tempo acontece no Chile, na Argentina e no Uruguai. 
     Lamentamos que o Brasil rejeite a confrontação com um período escuro de sua história.

7 de maio de 2010

Perguntas sem respostas (redação 01)



“Policiais Militares Rodoviários (PRE) de Ponta Porã MS, em fiscalização na data do dia 07/10/09 às 02h20min, em frente à Base Operacional da Polícia Militar Rodoviária, ao abordar o veiculo GM S10, de placas IPS 8414 de Boa Vista do Cadeado RS, conduzido pelo Senhor XXX e a passageira XXX, após vistorias no veículo foi encontrado no estepe 14 tabletes de cocaína. Diante dos fatos o mesmo foi preso em flagrante e cientificado de seus direitos constitucionais e entregue na Delegacia de Polícia Civil de Ponta Porã-MS, juntamente com a droga apreendida, que depois de pesada totalizou 19,900Kg (dezenove quilos e novecentos gramas), para providências junto à autoridade competente.” 

(Fonte: Nota à imprensa de 07 de outubro de 2009, Assessoria de Comunicação Social da PMMS/PRE)
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Pergunto: segundo o texto, 
  1. o que os Policiais fizeram?
  2. quem conduziu o veículo em questão?
  3. quem foi preso?
  4. o que foi encontrado?
  5. quem foi entregue na Delegacia?
  6. quanto pesou a droga apreendida antes de ser pesada?
Responder rigorosamente estas 6 perguntas é uma graça. Vejamos 

1. O que os Policiais fizeram?
    Nada.
    Os policiais são o sujeito da frase. Sujeito é aquele que faz alguma coisa. Ele pode correr, atirar, balear, dormir, estar desatento, fugir, até morrer. Qualquer coisa. Mas precisa fazer para ser sujeito. Estes policiais não fazem nada. Afinal, “ao abordar” e “após vistorias” são circunstâncias nas quais os policiais pretendiam atuar ou atuaram, e  seu comunicador social não foi capaz de encontrar palavras para nos descrever esta suposta atuação. Provavelmente os policiais encontraram algo. Alguém outro, porém, encontrou por eles. Algum sujeito na voz passiva nos omitido. Tirando as circunstâncias, a frase ruma para o seguinte abismo:
    Policiais Militares Rodoviários (PRE) de Ponta Porã MS foi encontrado no estepe 14 tabletes de cocaína.
    Cruzes! Existe nota abaixo de zero?!

2. Quem conduziu o veículo em questão?
    Duas pessoas. (Pode ter sido um carro de auto-escola?)
    Diz a frase, claramente, porém bem escondidinho num turbilhão de circunstâncias caóticas: “…ao abordar o veiculoGM S10, de placas IPS 8414 de Boa Vista do Cadeado RS, conduzido pelo Senhor XXX e a passageira XXX…” 

3. Quem foi preso?
    O pneu de socorro.
    Infelizmente isto está claro demais: “… após vistorias no veículo foi encontrado no estepe 14 tabletes de cocaína. Diante dos fatos o mesmo foi preso em flagrante e cientificado de seus direitos constitucionais …” 

4. O que foi encontrado?
    Nada
    Ao menos a rigor - nosso legítimo rigor com respeito a um bacharel em comunicação social. Temo que este não nos entenderá, portanto nos explicamos. Se ele nos informa que “foi encontrado” algo, podemos com toda razão gramatical esperar uma unidade. Isso não significa que deva ser pouco ou pequeno. Pode ser um milhar de tabletes, um quilo de maconha. Mas fala de “14tabletes de cocaína”. Em termos de gramática (e de lógica gramatical), “foi encontrado” e “14 tabletes” nada tem a ver. Eles nada têm a ver um com o outro.

5. Quem foi entregue na Delegacia?
    O preso (que é o pneu, como vimos acima) e o entorpecente.
    Em momento inoportuno, o comunicador social reencontrou a coerência que de resto lhe foge. Prendeu o pneu e evidentemente o entregou na delegacia: “Diante dos fatos o mesmo foi preso em flagrante e cientificado de seus direitos constitucionais e entregue na Delegacia de Polícia, juntamente com a droga apreendida.” 
    O pneu roda, mas o comunicador social também rodaria.

6. Quanto pesou a droga apreendida antes de ser pesada?
    Não sabemos.
    E, a princípio, nem queremos saber. Não queremos saber quanto a maconha pesou antes nem depois de pesada. Queremos talvez saber quanta maconha foi encontrada. 
    Já que o comunicador social coloca as coisas nestes termos: quanto pesou mesmo a maconha antes de pesada? Imagine se aparecer uma diferença!
    Depois de pesado é um preciosismo que castiga quem o usa.

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    A) Escrever bem significa estar atento ao que se escreve e revisar o que se formulou. Ninguém escreve bem sem revisar. Sempre dá para melhorar. E muito!
    B) Acertar a acentuação gráfica no português significa seguir a seguinte e simples orientação: As palavras portuguesas terminadas em a, e, o, am e em têm sua tônica natural na penúltima sílaba. As demais, na última. (Vale também para os plurais de ambos os grupos.) Sempre que a tônica se deslocar da tônica natural, incide acento gráfico.
    C) A virgulação no português é complicada e (infelizmente) muito discutível. A lógica ajuda a acertá-la. Aqui vamos tratar também dela.
    Ah! Ia me esquecendo da deusa gramática! Esta fica de lado o quanto possível. Dificuldades na escrita pouco se devem à falta de conhecimentos gramaticais e muito ao vício copiado de outros, ao desleixo e ao desinteresse. 3 malandros substituíveis pelo vício da perfeição, da vontade e do interesse.