16 de agosto de 2009

Tradução litarária



Gentileza de Dieter E. Zimmer
   Dieter E. Zimmer nasce em 24 de novembro de 1934 em Berlin. É escritor (20 livros na temática Psicologia, Biologia, Antropologia, Medicina, Lingüística, Comunicação Social e Biblioteconomia), tradutor (organizador das obras completas de Vladimir Nabokov) e jornalista. Formou-se em Ciências da Literatura e da Linguagem, em Berlin, Genebra e nos EUA. De 1959-1999, foi redator do renomado semanário alemão liberal Die Zeit, periódico iniciado em fevereiro de 1946, com hoje mais de 2,1 milhões de leitores. Zimmer obteve nove prêmios, dentre eles dois prêmios por traduções: o prêmio Helmut-M.-Braem, em 1996; o prêmio Fundação Heinrich-Maria-Ledig-Rowohlt, em 2008.
   Não pude deixar de primeiramente apresentar ao leitor brasileiro este grande jornalista alemão, ademais tradutor e escritor, de quem ando expondo um capítulo, por mim seqüenciado, que referencia especificamente o ofício da tradução. Ao perceber que das poucas linhas citadas jorravam parágrafos e páginas, não tive como não solicitar o consentimento do autor para dar continuidade a suas observações aparentemente intemporais.
    Responde Dieter Zimmer: „Uma vez que, a meu ver, meu livro ‘Redens Arten’ está fora do prelo, voltou a pertencer a mim – assim creio ‑, e portanto posso com todo prazer conceder-lhe a permissão para a publicação do capítulo Concurso dos tradutores em seu blog.”

Agradecemos ao Dr. phil. h.c. (Univ. Técnica de Dresden, 2003) Zimmer pela cortesia. Confira sua página web: http://www.d-e-zimmer.de/




Concurso de tradutores

A provisória indispensabilidade do human translator 

   Inícios de 1965, a Freie Akademie der Künste de Hamburg (Livre Academia das Artes) promoveu um congresso internacional de tradutores e, neste contexto, um concurso de tradutores em cooperação com o semanário Die Zeit. Devia ser traduzida uma prosa impressionista de Graham Green, ainda não disponível em idioma alemão: The Revenge. A participação foi grande: houve 620 remessas, todas anônimas. Como redator de um caderno da “Zeit”, fui parar no júri, decerto por ter tido oportunidade de ter alguma experiência como tradutor literário. Não dispunha de teoria da tradução, nem posteriormente a desenvolveria (na prática da tradução, tão pouco ajuda quanto a termodinâmica no preparo de um grelhado). Traduzira, contudo, autor exigente que passara a vida circulando entre duas línguas – Vladimir Nabokow. “Quando um tradutor começa a traduzir o ‘espírito’ em lugar do mero sentido de um texto, já começa a trair seu autor”, escrevera Nabokov; aliás, mandara simplesmente destruir uma tradução insatisfatória (sueca) de sua “Lolita”. Certamente não pretendera negar que uma obra compreende também algo como um “espírito”; quis apenas acautelar-se contra tradutores que grosseiramente ultrajavam o sentido literal em nome de um “espírito” vago e, certamente, nunca apreensível. Em resumo: certa precisão parecia-me muito desejável; a aspiração da precisão, porém, veio acompanhada da compreensão de que uma tradução pode ser precisa em diversos patamares, e que a precisão num deles pode ser a imprecisão noutro. Pode, por exemplo, tentar imitar a sonoridade do original, sua ressonância, aliteração – desconfigurando e desviando os sentidos das frases. Ou pode reproduzir com grande equivalência as estruturas frásicas, alcançando justamente desta maneira um grau de fluidez ou dificuldade não próprio ao original, tornando-se, assim, imprecisa. A boa tradução, assim me parecia, só pode ser um meio-termo que trate de ao menos diminuir as imprecisões dos diversos patamares. Agrega-se a isso que até palavras sinônimas de dois idiomas não costumam ser total e verdadeiramente equivalentes; e que mesmo as frases mais simples podem geralmente ser traduzidas nas mais diversas formas, bem como as preposições por trás, que ainda no idioma fonte poderiam ter sido expressas de diversas maneiras. Tudo isso havia me convencido de que qualquer tradução pode apenas ser aproximativa, infelizmente – e que seu crítico deve, portanto, dar um (certo) desconto: não pode aquilo que ele mesmo prefere considerar a tradução “correta” sobremodo ser o padrão das coisas.” 
   Essa venialidade já não resistiu depois da leitura de 620 traduções de um mesmo texto. (...) 
   Para um texto como o em questão – prosa moderna de uma cultura familiar, que pretende e deve antes ser lido pela narrativa e não por específicos interesses lingüistas ou outros ‑, para tal texto, afinal o caso mais comum, espero do tradutor que ele reproduza primeiramente o sentido terminológico com a maior precisão possível; e, por segundo, que mantenha o quanto possível (o máximo) daquilo que prefiro denominar de aura de um texto: cadência, ritmo, patamar estilístico, associações despertadas, carga histórica de sua linguagem. Creio ser essa a tarefa.
   A peça impressionista de Graham Green não é lá muito difícil. A desvantagem: a tradutores realmente bons oferecia poucas possibilidades de comprovar suas habilidades. A vantagem: não haver condições extremas senão as do cotidiano tradutório.
   Não obstante, veremos que também “A vingança” teve os seus busílis. Não é nada fácil imitar no alemão o parlando da lacônica dicção greeniana, aparentemente leve, relaxada, porém nuançada; a caminho de nosso idioma, tudo isso prontamente adquire o peso de uma esponja encharcada. Ademais, havia armadilhas. Aquela em que a maioria caiu consistiu em seis palavrinhas, um diálogo: He went into Cables and died. Cables, em maiúscula: não consta em dicionários. Significava: Ele foi à Cable & Wireless (hoje companhia para o trânsito internacional de telefonia e telégrafos do correio britânico), e morreu.
   Admitido, (;) ninguém precisa saber isso. Só que faz parte do serviço comum do tradutor, resolver questões que na verdade não se sabe nem se pode saber. Ou a gente sabe suprir a lacuna no conhecimento; ou a gente encontra um jeito elegante de se sair dessa. Quem, portanto, traduz: Ele foi à loja de cabos e faleceu, não está de todo certo, mas ao menos percebeu que Cables deve ser alguma firma, de modo que sua solução se enquadra sem percalços no contexto.  
   Agora, as contorções de quem não sabe encontrar saída: foi parar entre cordames; foi parar numa confusão de cordames, e neles morreu; chegou aos cordeiros; foi a Cables (lugar a ser ainda fundado, noutros casos simplesmente chamado C., por má consciência); tombou na invasão de Cables. Outros lhe atribuem uma convulsão tropical ou o mandam para um campo minado. Enigmático soa: Foi para o Cables (cinema ou zona?) E assim vai indo, até as pitorescas soluções forçadas: Teve azar e se foi; foi pro outro lado: corrente de alta tensão; lutou contra os cabilas; foi a Cabul; foi a Cabale, sociedade secreta difundida particularmente na Malásia; ocupava-se com contos à la Cable; disse “poh” e se finou. Este é apenas um pequeno recorte.   
   Bem, creio que já transparece meu objetivo: esse concurso revela uma quadro um tanto desconsolador das habilidades tradutórias que dormitam neste nosso país. Qual a razão? O fato de qualquer um poder participar, integrando-se muitos diletantes e calouros? Talvez. Só que, temo, não foi isso que diminui a aflição com o resultado. Pois poderemos primeiramente supor que um conto, e fácil, encaminhado a um concurso, terá sido trabalhado com maior primor do que um livro grosso traduzido sob a pressão do tempo; que, portanto, noutros casos a (inevitável) displicência resolve o que aqui causa o diletantismo; e, por segundo, há mesmo editoras que ajudam para a impressão ainda aos mais displicentes.  


1. Pedantismo
   Toda tradução é interpretação. Pretende reproduzir o que o tradutor entendeu de um texto, o que pode ser mais, pode ser menos, pode ser algo bem distinto daquilo que o autor quis expressar. Ademais, uma frase dificilmente pode ser tão simples que não haja possibilidade de traduzi-la de diversas maneiras. O tradutor compara-se a um instrumentista: como este, deve dar novo formato a um objeto concebido por outrem, de certa forma existente apenas virtualmente para ele. É tolo condenar a “tradução interpretativa”, como constantemente ocorre. A tradução não pode senão ser interpretação. A questão é apenas se o tradutor interpretou certo – ou ao menos se movimenta num quadro plausível.
   Algo bem distinto é, contudo, a tradução pedante. O translateur que sempre sabe tudo melhor do que o autor, em toda frase obstinadamente empenhado a se produzir, a quem não basta traduzir The Revenge com A revanche, firmando em vez disso A revanche de um homem ou Revanche petrificada – causa devastações quase maiores do que o simples ignorante (que, aliás, não deixa de ser).
   Em momento determinante, Greene compara o desejo da vingança em seu conto com um ser, um animal sob uma pedra: a creature under a stone. Animal, ser – algo insuficiente aos pedantes. Seus unidos esforços geram verdadeiro zoológico. Sua pedra cobre vermes, vérmina, rãs, besouros, cobras, víboras, cobras-cegas, sáurios, lagartos, répteis, gusanos, seres animais, pragas, bicharedo, bestas, demônios e monstros; aparecem besouros pestanejantes, bichos-de-conta à procura da luz, insetos vingativos; sequer falta um porquinho-da-índia confinado em escura caixa metálica, alimentado com seixo.
    Os mais afoitos pedantes não têm pudor em enlaçar verdadeiras frases de produção própria. O leitor atento costuma percebê-las por sua tolice.


2. Censura
    Variante do pedantismo é o costume de censurar moralmente o autor traduzido. A história de Greene pouco motivo ofereceu para tanto; não houve trechos ou vocábulos ofensivos que pudessem convidar a cortes ou amenizações. Não obstante: quem transpassar uma frase como pouco me interessava o clímax da história para o sentido de valores morais eu então ainda tivera pouca compreensão já atua como censor moral. O tradutor deve saber negar suas próprias opiniões.  

3. Pressa
    Traduções, diz-se, são sempre mais compridas. Deve ser verdade – de outro lado, sempre se perde algo no caminho. Palavras, orações, frases, parágrafos desaparecem sem deixar vestígios: perdem-se num dos processos de cópia. Pressa transforma o Pacífico em Atlântico, uma história moralista numa muito imoral.


4. Ignorância do contexto
    A mais empenhada revista de dicionários não dispensa o tradutor da necessidade de acompanhar o raciocínio. Precisa perceber que na história de Green o menino tantas vezes leu o romance “Foe-Farrell” por ter cogitado revanche, e não o contrário. Aliás, Fritz Güttinger fala algo sobre a prática da tradução literária, “Zielsprache” [Língua-Alvo], em seu interessante livro.

5. Frase salada russa

    Nem sempre será possível manter exatamente as unidades fraseológicas da língua original. No alemão, a frase fica facilmente confusa em função de o verbo freqüentemente ficar no final da frase, e em função do difícil emprego das tão cômodas orações participiais. Num caso desses, é melhor uma cisão determinada do que uma irreparável confusão lingüística, que afinal não houve no original. Devem, porém, ser temidos tradutores que cortam quaisquer longos períodos, fazendo de todo ligado um staccato canino.


6. Ênfase podre
   Há tradutores que não conseguem traduzir to read a book como ler um livro. Eles mandam devorar um cartapácio. Cada muito vira um demasiado, ignoram vingança quando não gélida, impiedosa, sem compaixão. Generosamente espraiam pontos de exclamação texto afora. Por vezes, dois ou três seguidos. Afinal poderíamos ter ficado surdo com sua gritaria.


7. Teutonização
    Como é sabido, a língua alemã tem uma tendência para a formação de substantivos brutos, pesados, (palavras-centauro, conforme Martin Walser), tendo alguns deles um ar de populismo nazista. Deveríamos poupar delas o autor estrangeiro. Quando Green diz loyalty, não se refere a devoção ou responsabilidade culposa, e o conflict of loyalty não é luta de credo. Qualquer baixio que consistiria nalgo como arisca admiração é rumorejo totalmente alheio a Green. Sem falar da estúpida falta de instinto em traduzir clímax como solução final.


8. Estereótipos lingüísticos
     Quem adquire seu vernáculo particularmente de historietas de amor, de preferência não deveria partir para a tradução. Quando o dito cujo escutar a palavra vingança, logo associará a com brasa que, por sua vez, arde. Onde dizia sinto uma necessidade de vingança, escreve ardia-me a brasa da vingança (com o resultado de que, na seqüência, o animal debaixo da pedra se transformará em cinza quente, em que ficam remexendo).

9. Falta de fantasia lingüística
    O tradutor deve saber apreciar dicionários, e ao mesmo tempo saber se lhes impor. Quem neles se amparar em demasia, redigirá algum esperanto, mas nenhum vernáculo. E o que mesmo fará quando o dicionário lhe falhar, afinal algo costumeiro?
  Ao final da história aparece, então, a palavra anti-clímax; como anti-clímax, decepcionantemente diferente do esperado ápice, revela-se o último encontro dos velhos colegas de escola, e a palavra alude ao mesmo tempo ao desejo da vingança dramática, (clímax) da literatura juvenil. O tradutor não teria, pois, que fornecer apenas uma correspondência alemã para o anticlímax, teria ainda que esclarecer essas relações. A palavra anti-clímax não corresponde a nenhuma dessas finalidades, sendo, ademais, uma falsidade – tal qual o anticlímax. Neste caso só serve um rodeio, o que exige a habilidade do uso um tanto flexível da língua. Facilmente acontece o tradutor tomar liberdades desnecessárias: senti-me como um balão que perdeu seu gás. Ou é demasiado tímido, gerando palavras malogradas tal qual anti-agravamento ou não-ápice. Fantasia lingüística: isso significa saber testar possibilidades, saber balancear nuanças, arriscar desvios, se bem que comedidamente e nenhum passo além.


10. Discurso direto
      Não é fácil acertar o tom exato de um diálogo De um lado, corremos o risco da artificialidade (ei, você não nos ajudara sempre na preparação ao latim?); do outro lado, de uma caricatura da gíria (rapaz, na escola sempre dava um durão no latim!). Mesmo bons tradutores chegam a fracassar do discurso direto. Desafio bem mais difícil para o tradutor ocorre apenas ao lidar com a tradução de dialetos, slang, argots e quejandos!


11. Imagens distorcidas
       Comicidade involuntária produz com maior facilidade aquele tradutor a quem falta o faro das imagens e comparações desmesuradas, que não percebe que o lado figurativo de uma comparação é aquele que deve determinar a formulação do que segue. Maliciosos apelidos, dizia na história, foram-lhe enfiados que nem espinhos sob as unhas. Aqui não funciona nem apelidos acertavam-no que nem espinhos (que afinal não são projéteis) nem foram entremeados, implantados, envolvidos, enredados ou jogados. Resulta sempre em mera catacrese.



12. Barreiras de importação
      Em textos estrangeiros sempre aparecem coisas que não existem na Alemanha. O que fazer? Primeiramente, devem ser reconhecidos. The head of the house é o mais velho da casa, o prefeito de um internato inglês (representante da turma já seria demasiado alemão). Quem não percebe isso, enfia-se em abstrusos descaminhos. Pare ele, esse irmão mais velho vem a ser o chefe de família, dono da casa, espírito líder do lar, proprietário da casa, caseiro. E a seguinte variante permite conclusões sobre relações familiares incomuns: meu pai era chefe supremo; meu irmão mais velho, chefe de minha família. Até quem reconhece com certa precisão o certo  nem sempre o saberá expor. O cacique é aqui tão inconveniente quanto o policial, o diretor da divisão escolar, o chefe da casa escolar ou mesmo o chefe de grupo e o líder de grupo.



13. Imposição de vícios lingüísticos
      Ao estranho autor gentilmente não se deveria impor os próprios vícios lingüísticos. Se para a gente tudo tiver um tchã ou graça, e se não simplesmente ocorrer, mas ocorrer um tanto peculiarmente, o autor traduzido, não obstante, merece misericórdia.

21 de junho de 2009

Divagações de tradutor


Férias! Último dia! Deixemos assuntos cabeludos para a próxima semana. Fiquemos com a leveza do ser tradutor! Leveza que paira. Por definição. Coisa de segundo grau, de física e gravidade. Hoje, de ensino médio e de gravidez.
Cabeças humanas divagam. Fazem-no desde que são humanas. (Não: desde que humanas. Pessoalmente, creio que o fizeram antes.) Quando literário o tradutor, ou das ciências sociais, o ofício reforça o vagar. Afinal, faz diferença descrever parafusos ou feições e corações.
Com que não nos alimentam nossos autores: paisagens naturais, paisagens humanas, perfiladas ou apenas faciais. A observação de uma flor e seu beijador. O mirar e pensar do cão amigão. As relações humanas e desumanas. Sons e odores, sentimentos e rumores. me envolvi com terrorismo e comunismo; lençóis freáticos, meio ambiente; solidariedade e educação. Tutti fruti. Como não acompanhar, pensar, sonhar, aprender e crer.
Meu atual autor me ocupa com a questão e gestão da ética. Reconheço na ética a palavra das palavras. Acima de amor e mandamentos. O pico da montanha dos conceitos. Houvesse ética generalizada, não bastaria? Não seria melhor do que o amor ao próximo, mandamento predileto da infiel? Ou o amor generalizado, não necessariamente ético?
Bem, é o campo dos filósofos. Limitemos as divagações:
São certas orações, certas abordagens que me vêm à mente nesta ocupação oficiosa com a ética. ouvi gente rezando por minha sorte financeira! Fico feliz em deus ter a grandeza suficiente de indeferir. Imagine a inflação zimbabuana que daria se atendesse? Bilionário, mais pobre seria do que o agora milenário.
Intrigam-me também os dois goleiros que, prestes ao início do chutebol, ajoelhados, em gestos cruzados, religiosamente imploram seus deuses, em geral idênticos, encomendando a sorte para si, o azar para o semelhante. Definitivamente! Não têm misericórdia para com seus deuses.
O humano desejo daquela hora pode ser muito delicado, evidentemente, para não constranger. Algo como “dai-me minhas forças”! Afinal, é preciso ser ético.
Também com deus.

Toque mágico

Tenho alguns vocábulos que nunca encontro. Palavras corriqueiras e poucas, sempre as mesmas, porém.

Não pode! pensa o leitor. Pode, sim, responde meu célebro, como diz minha filhinha e dizia eu infante. Algum cluster deve estar danificado, e o sistema não consegue reparar o dano. Ou a palavra não foi salva direito, logo de início, sem eu perceber. Deixa ver: são as palavras... as palavras .... Não em jeito! Também! Com o cluster “quebrado”!

Chatice! Fosse ao menos pro inglês, onde tenho recursos digitais. Mas alemão <> português. Nada! Que preguiça de procurar o gordinho em papel! Folhar e folhear e foliar ‑ que nem outono boreal. Deve haver outro jeito!

Descanso o queixo na palma, no punho, nalguns dedos dobrados. Fito a tela. Descubro o chiclete. O punho se abre, abre o chiclete, o chiclete faz a boca abrir. Calma, calma! Também esse exercício físico não abre a gaveta certa na estante certa no corredor certo no setor certo do departamento certo. Lá no alto. Lá dentro.

Tu sempre sabia! Tantas vezes encontraste. É a mesma palavrinha.... Será possível? Será?

Espiada de soslaio ‑ lá está o gordinho. Puxa! Porque não te abres sozinho e pulas na tela, como outros fazem, sabidinho? Tirar as mãos das teclas é como dar uma parada em carro a 80. Tu sabes. A gente para quando chega.

Deixa! Vamos dar mais meio minuto de chance para o andar de cima ‑ não é possível!

Nada. Nada feito!

Tá bem, não tenho mais tempo para perder! Ganhaste, Langenscheid. Mas não me prega a mesma peça de sempre! - Silêncio. Nem liga.

Lanço minha mão à sua direção. O toque. A iluminação! Está aí a palavra! Palavra que nem estava na ponta da língua. É brincadeira (do dicionário)!

Às vezes não basta o toque para o efeito, é verdade. É preciso folhar, encontrar alguma palavra que inicie com a respectiva letra ‑ e cá está essa palavrinha boa no esconde-esconde!

Um braço, uma mão, um toque em capa e papel – uma ponte, um curto-circuito, uma luz, uma solução (já conhecida)!

Hipóteses? Claro. Mas sobre fatos.

Ah! O toque teve seu efeito: são as palavras: sobrinho, ciúme - e mais algumas. Corriqueiras que só. Não disse?

Crônica agraciada com menção honrosa no XIII Concurso Literário da ALPAS

Olá Ana! Hallo Anna! Hi Ann!

Oi, onde estão vocês três? Que sincronia! Fosse somente uma a desaparecida, o assunto não caberia nesse blog. Agora, logo as três! Isso deve preocupar o tradutor hodierno. Digo moderno, porque o tradutor clássico não terá experimentado a tríplice ocultação.

Na verdade sou ainda um dos clássicos, se bem que não o último, por falta de idade. Quando vejo a lacuna, a preencho, como bem me ensinaram, já sem palmada, em tempos juscelinos e brizolistas!

Mas aí que está o problema. Aliás, um problema de obediente ex-secundarista. O que então esteve certo, hoje parece errado. A gente não o percebe quando falta apenas uma delas. Mas quando a Ana e a Anna, cruzando fronteires e oceanos, se tratam do mesmo jeito, e até a Ann cai no coro uníssono – então não podem estar todas erradas e eu certo!

É o que ando pensando. Sempre mais. Os textos que recebo me forçam a cogitá-lo. Os mails de todos os lados: de amigos e inimigos, de vírus, piratas e espiões. Nenhum deles quer saber de vocativos, que definham sem sua virgulazinha.

Não chego a nenhuma conclusão. Mudo o método. Paro de ler com os olhos e leio com a boca. E constato que elas têm razão. A fala não deixa o mínimo espaço para a vírgula. Realmente não cabe!

Nos tempos da formalidade, “Boa tarde, seu João!” era sinônimo de “Desejo-lhe uma boa tarde, seu João!” Hoje, “Olá Ana!” ainda significa “Dou-lhe um olá, Ana!”? Significa antes um ”Te percebi, Ana!”

Retornando ao ofício: se traduzo correspondência (e o faço), e ambos os lados escrevem na maneira moderna, já não sinto mais cacife para imprimir tempos idos a tempos modernos. As Anas me matam pelo cansaço. E é assim que as coisas evoluem e sempre evoluíram. Matando pelo cansaço. O que admira, é a simultaneidade nas três culturas, se não noutras mais.

Espiemos ainda, sobre o “alô”, o Houaiss, que está com um pé de cada lado do muro, onde vejo dois vocativos:
1 us. para chamar a atenção de outrem
Ex.: a. vocês aí embaixo
2 us. como saudação
Ex.: a., amigos radiouvintes

E eu toda manhã abrindo meus “Hallo Herr Dressel!” da nova geração de secretárias e de seus velhos seguidores! Fugir como? Acho que estamos liberando uma tecla para algum novo sinal. Talvez este: :)!

25 de maio de 2009

Gostoso transtorno

Será que acontece só comigo? Seja lá como for, fascina. E por isso comento. Bi, tri ou multilíngüe, a gente fica lendo muita língua cruzada.

Em tempos de internet é como que simultâneo. Pula-se de um artigo na Folha Online ao The New York Times, e ao Der Spiegel. E a coisa ainda pode se potencializar quando o pensamento vaga paralelamente em mais outros campos ocupacionais de nosso dia-a-dia. Aquilo de que qualquer psicólogo nos previne por maléfico a nosso bem-estar. Porém, seguindo analogia de filósofo não descartável nem longevo: existe por constatado.

Algumas vezes ocorre um descompasso estonteante: lá vão os luzeiros avançando ao compasso de anos-luz (300 mil km por segundo – imagine ler o jornal em facção de segundos!), ao passo que a audição interna, que sustenta a leitura muda, avança a 343 metros por segundo - bem, a referência vale para o meio ar a 20 °C. Como em nossa singular cabeça pouco ar há de ter, porém muitos neurônios aquecidos a 37 °C, deverá ocorrer alguma aceleração de fator a mim desconhecido, não obstante sem qualquer chance contra a célere concorrente, tão aspirada particularmente no século XVIII.

Meu transtorno, pelo visto e pelo que confirmo, não passa de facções ‑ se bem que delas muitas ‑ de segundos (uma facção seria, provavelmente, pouco até para a percepção do black-out, desse preto e branco do qual estou falando).

Quando acontece, acontece quando troco a marcha, por assim dizer. Quando altero da língua primeira, de uma leitura profunda, para uma segunda. Paro num inesperado ponto morto. Num curto-circuito, mágico instante que me desperta e faz estranhar. Quando as palavras lidas já não fazem sentido e soam enigmáticas: nasais em inglês, th’s no português. Instantes de desorientação nebulosa, sem perceptível lei da gravidade, que ao menos me daria uma base inicial, uma referência para um reposicionamento.

A audição íntima dá um basta e puxa os luzeiros de volta ao ponto de partida, para conferência, sincronização e câmbio, para re-interpretação.

Dopado sem droga. Eu acho legal. Pena que é ocasional e não provocável.

Crônica agraciada com menção honrosa no XIII Concurso Literário da ALPAS.

A Tecla

é uma vez mais aquela em que estamos batendo tanto. É que me ocorreu mais um baita argumento, prático e oral. Provém da minha remota experiência de professor de alemão para brasileiros, e veio-me à tona quando reli o texto O gigolô das palavras, lembrado em lista amiga.

Todos, em nosso ramo, conhecemos aqueles acanhados em falar línguas estrangeiras ou estranhas, como que de fogo. Que fazer com essas pessoas que preferem não aprender a errar?
Como elas investem$$ no aprendizado do primeiro (dificilmente segundo) idioma estrangeiro, efetivamente precisam falar, e falam. Mas falam murmurando para evitar que alguém detecte seus inevitáveis erros.

Nestes casos, recorri ao que ouvira de incerta professora de línguas, que me convenceu de cara: fale alto e claro, fale para que escutem seus erros, que todo mundo lhe entenderá. Se não escutarem seus erros, pouco ouvirão e nada entenderão. Esses erros são evidentemente gramaticais, sabemos.

E não é a pura verdade? Conhecemos tanta gente estrangeira que muito peca em nosso idioma, mas os entendemos perfeitamente, pois são pecados apenas gramaticais, generosos e preposicionais. Digo perfeitamente em relação àqueles numerosos compatriotas que em perfeito português não dizem coisa com coisa.

Outra vitória da clareza e lógica sobre nossa querida gramática, nem sempre clara e lógica!

20 de abril de 2009

O cheiro do livro

Livraria livraria tem seu cheiro todo especial. Tem porque todo livro tem seu cheiro de livro. Livro novo, velho, mofado, plastificado, esquecido, ilustrado. Claro que, quando livraria definha virando papelaria, o pobre resto dos livros fraqueja. E a livraria virtual, então.

Tenho em casa, entre o cheiro de meus livros, dois extremos: um de abrir as narinas até os pulmões, o outro, de guardar a sete chaves na queijeira.

O cheiro do primeiro exala há muitos anos do Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Mais precisamente de sua capa de couro. Triste verdade é que, após 26 anos de convivência, esta capa deu o que teve a dar. O odor está mais virtual que real.

Foi parar em minha estante também o Novo Dicionário Websters, distribuído em cadernos, como cortesia para o assinante de um jornal. Cada verbete procurado é uma ânsia de vômito. Que processo químico terão usado na produção? Teria sido a razão da cortesia da editora?

A bem da verdade – também este nauseoso sucumbe ao tempo. Felizmente.

19 de abril de 2009

Mantenha distância

adverte o caminhoneiro na sua traseira. Pois perante cada tradução deveria constar a mesma placa. Mantenha distância! A distância para o original em sua estrutura lingüística, que invariavelmente quer impregnar e efetivamente impregna nosso labor quando este não for rotina aperfeiçoada.

É o constante “nós dizemos” do Agenor Soares de Moura, com que ‑ pasmem ‑ confronta até os melhores escritores-tradutores brasileiros. Não é mirabolante? Seria desleixo do tradutor? Penso, muito mais, que as ocorrências revelam a genuína gravidade do perigo corrosivo da transformação dos idiomas. Também o tradutor tem uma só cabeça.

Em meio a boa tradução de um edital do British Council deparo-me com um “tem como objetivo encorajar o intercâmbio”, direto do inglês. Nós diríamos “incentivar” ou “fomentar”, também acepções do verbo “to encourage”. Falsa amizade! Mais: “A novidade este ano é o Charles Darwin Award”. Quanta preguiça para quem recebe pagamento por palavra! Deveriam descontar o prêmio de 7 centavos do “award”. E um desconto pelo mau ordenamento da frase. Mal cheira também: “As pesquisas podem ser em qualquer área de Ciências.” Aqui ocorre, no mínimo, pobreza de estilo. Outro desconto. Será que há tradutor que no final do mês não consegue saldar suas dívidas com o patrão após receber, como é uso em certas fazendas no seio do Brasil?

Os parcos exemplos já não se restringem ao âmbito relativamente simplório do vocabulário. Envolvem a estrutura da frase.

Com a experiência, eu mesmo comecei a adotar a técnica de não me deter muito nesses itens na primeira corrida, pois já numa primeira revisão consigo melhor me desprender do idioma “opositor”, o que facilita chegar intuitivamente às soluções não encontradas na febre da batalha original. Na revisão descubro as vírgulas de uma gramática não brasileira; orações e intercalações que soam mal enquanto não deslocadas ao agrado do ouvido.

O fator tempo é o melhor amigo do tradutor para este desembaraço dos idiomas. Separa (distancia) o texto concreto à nossa frente do emergente texto virtual em nosso fundo. Uma terceira e quarta revisão, com intervalos de dias ou semanas, são bálsamo para as inevitáveis infecções de nossas línguas, que nos acarretam dor de ouvido e que depois não queremos engolir. Verdadeiro caso de otorrinolaringologista.

Sinceramente!

Chiclete com banana

Pode haver título melhor para essa música, que prefiro na interpretação de Tânia Maria? Pode haver melhor música para esse título certeiro, samba com suingue, ou jazz com rebolado de samba?

Poesia, é claro, precisa ser certeira, senão não seria poesia. E essas três palavrinhas tão bem fundem a essência das duas culturas (musicais), a essência da música americana com a da brasileira. Colocam duas essências culturais em perfeita harmonia musical e poética. Não será exemplo único, como certamente ocorrerá a este ou aquele leitor calado. Mas é um exemplo perfeito.

Afinal, evitou-se o desgraçado “samba-jazz” ou “jazz-samba”. O grande poeta Gil providenciou sua própria e perfeita tradução. Chiclete, o símbolo maior daqueles que criaram o jazz e adoram comer uma banana exótica. Já a banana é o símbolo dos descamisados, que têm a seu alcance a preciosa banana e, modernamente, o pobre suplemento chewing gum. “Chiclete com banana” é uma "tradução", uma ponte perfeita. Quem masca chiclé é norte-americano. Afinal ninguém sabe que os astecas e os maias mascavam a goma original. Já o americano – que associação lhe suscitará, uma vez que sua banana provém da América Central? Imagina jazz com rumba ou merengue?

Como vemos, a tradução poética é perfeita - para nós brasileiros.

A técnica do papagaio

Quando a situação descontraída em circunstâncias de interpretação me permite, apresento o orador fulano tal, e depois a mim como seu papagaio, que tudo repete, mas à sua maneira.

Essa gracinha é menos gracinha do que parece. O profissional bem-sucedido tem a grande habilidade de interpretar parágrafos inteiros. Eu, por minha vez, nas poucas oportunidades anuais em que interpreto aulas ou palestras, interpreto oração por oração ou frases curtas. Algo entre consecutivo e simultâneo.

Afirmam que é conveniente ser bom orador para bem interpretar. Pois eu não sou bom orador nem mau orador. Simplesmente não sou orador. Não obstante, a minha técnica me permite interpretar determinadas falas. É uma técnica que surpreendente e felizmente compensa minha péssima memória de queijo suíço. Sinto minha forma de tradução como uma técnica que dispensa a memória, e por isso mesmo a figura do papagaio cola bem. A sensação é até mesmo de não estar pensando, de tão automaticamente que ocorre.

Interpretar uma fala clara e bem pensada não é lá complicado. Já falas desconexas, desestruturadas, o “pensar alto” calam o papagaio, que, boquiaberto, levanta as asas em desespero, recobrando seus sentidos apenas quando verdadeiramente interpreta.

27 de março de 2009

Um ar de sranan surinamês no Brasil

Ich hob die Mule mit de Relhe ins Potrer getockt, além do enunciador, entende só quem fala simultaneamente alemão e português brasileiro sulista – muitos qualificativos para um só ouvinte!

É a fala de grande parte do colono imigrante alemão no sul brasileiro e significa: toquei a mula no potreiro. Potreiro, por sua vez, é sinônimo sulista de piquete.

A estrutura da frase é perfeitamente alemã. Um alemão perceberá que alguém está lhe falando em sua língua, mas nada entenderá. De outro lado, o brasileiro menos ainda entenderá, apesar de seu interlocutor usar suas próprias palavras. Os três substantivos da frase e parte do verbo composto são palavras portuguesas ligeiramente adaptadas à gramática alemã.

É uma língua sem escrita. Não é exatamente uma pequena Babel. É antes a sonhada, porém malograda solução democrática que Babel insinua: falemos uma única língua, que nos entenderemos! Só que quem entre os babilônios seguiu esta lógica tão lógica apartou-se dos demais e ficou em condições iguais aos demais.

Este idioma alemão brasileiro consagrou-se recentemente como mais uma língua autônoma de nosso universo. Mas a escolarização é seu coveiro.

24 de março de 2009

Gramestilo

Por duas razões quero insistir na questão. Primeiramente, nós tradutores, literários e de prosa, constantemente temos que desmantelar e destroçar torneios paragráficos para reconstruí-los na forma natural de outro idioma. De preferência, esquecendo por completo a estrutura original, que nos vicia o resultado. Para tanto, nem de longe basta dar conta de palavras e sinônimos. Requer-se torneio e estrutura. A segunda razão é que toda hora minhas fontes não literárias me demandam a reconstrução. Muitas vezes, este processo de reordenamento me custa mais tempo do que a procura de algum sinônimo estrangeiro. Vejamos 2 exemplos típicos da prática, ou seja, da realidade:

a) ... eu estava escultando uma linda musica que mesmo sem agente ter mantido contado eu já escolhe essa linda musica para nos a letra é muito forte ela é assim: direpente quando menos se espera, (...) mas você vai se acustuma no final. deixe acontecer e você vai ver vale apena tenta.

b) ... Assim, considerando-se que como boa parte dos conteúdos trabalhados pela disciplina de história possibilitam uma grande aplicação prática, seria válida a contribuição através do desenvolvimento do presente estudo tendo como objetivo principal a apresentação de metodologias de trabalho utilizando-se saídas de campo como técnica de construção do conhecimento.

O primeiro exemplo é impactante, carece de gramática básica, o que é raro nesta dimensão. Mas não custa a nós tradutores consertar tudo sem grande perda de tempo. Já o pequeno segundo exemplo, academicista, me causa um atraso de talvez 15 minutos em função de seu estilo. Particularmente seus gerúndios nos transformam em arqueólogos à procura das origens e referências desses gerúndios.

Perdi o norte? Não. Soube de fonte fiável que há até escritor que não sabe escrever. Essa afirmação implica que o cara tem sucesso, senão não seria “escritor”. É, portanto, o revisor editorial que faz desse escritor um escritor. Difícil de digerir essa verdade, seguro. Mas em nada muda não acreditar. Para abrandar: deve ser coisa exclusivamente de escritor moderno.

Pois bem. Aonde eu queria chegar? A On writing well, de William Zinsser. Li outros livros do gênero, em alemão e português. Mas o português é o pior, é detalhista, técnico. O inglês é o melhor. Parte da lógica, do bom senso. É o que me dá pé: simplesmente pense no que está escrevendo. Seja simples, extinga chavões. Use palavras curtas em lugar de longas. Seja preciso. Corte. Ao cortar, se torna preciso. Ao cortar, recorre à gramática para encontrar soluções melhores, mais elegantes. Ao cortar, aguça seu sentido pelo bom estilo. É só. É a questão. E se quiser se aperfeiçoar nessa técnica, comece a mergulhar em detalhes gramaticais e de estilística. Não obstante, é gramestilo: pouca gramática, e muito estilo.

Onde estão as letrinhas mais lindas?

Estava com outra carta na manga para esta sexta quando me encanto pela palavrinha-chave das letrinhas, que novamente me cai na vista como possível tema anotado. Encanto e decisão acontecem no mesmo instante. Um pouco de intuição faz bem à redação!

É um tema que sinto como poético, como poesia de amor, bem entendido. É mais emocional, dá mais rédeas.

Bem, basta de prelúdio amoroso. O que me inspirou para o tema é uma coincidência na dupla dicionário e filas nas bilheterias do SESC, concretamente. Aquelas filas de ingressos pré-encomendados e reservados no nome da gente.

Observo ano a ano que os organizadores lá dominam mais ou menos a divisão por dois para o alfabeto de 24 letrinhas, mas não dominam a divisão em partes iguais das filas de seus espectadores. Devem estar separando a-m de n-z. A primeira fila chega a ser 5 vezes maior que a “minha” fila. E isso se repete ano a ano. Acentua-se a desproporção porque deixam até todas as Marias brasileiras na primeira fila.

Outro enfoque: sempre observo nos dicionários brasileiros como aquela divisão tradicional que cai entre as letras m e n acentua artificialmente o desequilíbrio do dicionário. Minha velha enciclopédia alemã divide seus tomos em a-k e l-z para ter 2 volumes iguais.

A relação entre o volume de páginas entre a-m e n-z para dicionários padrão comportam-se assim nas 4 seguintes línguas: Dicionário Etimológico Nova Fronteira: 542:296 páginas (= 1,8); Larousse (francês) 227:133 páginas (= 1,7); Oxford Dictionary and Thesaurus: 987:801 páginas (1.3); Duden (alemão): 369:316 páginas (1.16).

Nesses números está a chave para minha preferência lingüística, a beleza do português brasileiro falado, apreciado também por outras nações.

Quais as letrinhas que provocam esse encanto pessoal e internacional? É a abundância dos as em vatapá e abacate e sua singular nasalização em amante, tamanduá e mamãe; são os bês em beberibe e bebê, tão superiores aos pês de papo e pipa. Os dês de dado e dendê, tão mais carinhosos que os tês de tato e tatu. Não posso cantar o efe, mas compensam o gê e logo mais o jota, as suaves jóias do português, alcançadas apenas pelo francês. O aga é mero ornamento. Abunda o i: Ijuí, Ivoti e Iraí; subversivo, multiplica-se até à custa alheia em pede e mede, atordoando ainda o dê : pedgi i medgi.

O que tem a oferecer a contraparte? Tem, digamos, o o em sua forma aberta ou quando convertido em u: pouco, louco; já o rr, quando carioca (um agá alemão e inglês), é uma jogada genial do português que sequer os franceses acompanham! O vê e o zê merecem menção, mas não são lá grande coisa! Ok., nosso pê merece certo destaque, pois dispensa o duro soprinho do irmão inglês e alemão. Curiosidade à parte: os colonianos encontraram seu jeito, Bonaparte ensinou, e gostam até hoje.

Bem. Como dizia, são coisas de amor e de preferências que não se discutem! Na fila do SESC fico meio sozinho; já nas minhas preferências não: o povo brasileiro nomeia 5 entre 6 de seus filhos com minhas letrinhas amadas!  

Crônica agraciada com menção honrosa no XIII Concurso Literário da ALPAS.

A difícil equação do “tradutor nativo”

Não serei o único “tradutor nativo” a reparar sua metamorfose de “nativo A” para um eventual “nativo B”, e a fazer suas continhas, suas equações, que são de menos, pois nunca chegam a cem. Para mim, o “A” coincide com alemão, e o “B” com brasileiro.

Para colocar de cara o cerne da coisa: no Brasil, posso me caracterizar como tradutor nativo para alemão. É o que acontece. Poderia eu, entretanto, na Alemanha denominar-me nativo brasileiro? Melhor: a partir de quando eu eventualmente poderia?

Façamos uma continha: os primeiros 13 anos de vida passaram-se no Brasil. Desses, 6 aninhos sem ouvir português, seguidos, porém, de marcantes 7 anos de escolaridade brasileira. Digo marcante porque, no mundo teuto, sinto eternamente as vitais lacunas da escolaridade perdida na Alemanha. As lendas, a geografia, as cantigas infantis e folclóricas, das quais aliás não acho graça (sic!). Neste sentido, a balança imaginária começava a tender para a natividade brasileira. Seguem 23 anos na Alemanha, sem grandes simpatias por ela, o que prejudica sua absorção. E outros 19 anos no Brasil. Anos atentos à língua, anos logo voltados à tradução.

De certa forma, a balança entre A e B passou do ponto de equilíbrio. Claramente pela estatística, mas também aparentemente, pelos indícios. Aritmética já não é. É mesmo sensação e observação. Sinto onde meu vocabulário evolui e onde definha. E esse processo não é linear. Depende do registro e do campo temático, por exemplo. Recentemente, o alemão sofreu reforma ortográfica um bocado impactante. Flagro-me com dúvidas antes inexistentes com relação a verbos compostos e às maiúsculas. Até com relação a preposições. É quando me sai um surdo “opa”, é quando percebo que o tempo correu, que estou a 12 mil km daquela língua, que ela chega pelos meus olhos, e não pelo ouvido. Que me sai pelos dedos e não pela boca. Língua morta, de certa forma. (Já outros conseguem ressuscitar línguas mortas há milhares de anos!)

É uma metamorfose muito interessante, e certamente todo tradutor a experimenta em sua própria particularidade de ser e de ela suceder. Com maior ou menor intensidade. Mais que aritmética, é alquimia. É onde falham gavetas burocráticas ou sindicais. É dirigível [quis usar conduzível, mas vetam-me os dicionários], porém não dominável.

18 de março de 2009

De Chuí a Chuy

é um passo. Fomos desprevenidos, de turismo, e assim chegamos. Depois de 500 km de terra plana, finalmente o extremo sul do Brasil. Queremos adentrar 20 km em terra uruguaia para ver um famoso forte. Cruzar fronteiras é sempre algo fascinante, ainda mais neste Brasil sem fronteiras.

Barra-nos um aduaneiro uruguaio. Quer a carta verde, que teríamos que providenciar no centro de Chuí. Seu colega parece estar em desacordo, mas é subordinado. Mercosul parcial.

Vamos à Barra do Chuí, onde o pessoal, incrédulo da brincadeira do alfandegário, indica-nos uma estrada opcional por sobre a ponte internacional sem qualquer controle. Fazemos nosso passeio, retornamos deslumbrados com a beleza da fortaleza San Miguel e do pampa.

No centro de Chuí, a grande surpresa. De repente nos encontramos em meio a um infinito turbilhão de pessoas em plena e ampla avenida de 4 pistas onde mandam o pedestre e o camelô. Sabe-se lá em que solo estamos. Difícil encontrar um brasileiro. Nas placas comerciais e na propaganda predomina o espanhol, o turista é antes uruguaio que brasileiro. Turista do hemisfério sul aparenta rumar para o norte. E o extremo sul brasileiro é o extremo norte uruguaio.

Meu Passat 78 clama por uma oficina. Em três oficinas atendem-me mecânicos uruguaios. A pizzaria na Barra está em mãos uruguaias, a que talvez se deva sua excelência. No hotel brasileiro, avisos exclusivamente em espanhol. Na praia, turistas uruguaios.

O que eu queria narrar mesmo é dos dois idiomas que ali se confundem. Uruguaios que, entre si, falam mais rápido que seus velhos carros andam. Não há como entender. Conosco falam um portunhol carregado de eternos surdos: preciço viachar amañâ. Cidade repleta de tradutores e intérpretes: cada qual é seu próprio tradutor passivo. Recomendo a beleza desses rincões também aos tradutores ativos!

22 de janeiro de 2009

O tradutor globalizado


é um chavão, porque tudo e todos estão globalizados. Comparemos brevemente o tradutor de 15 anos atrás com o de hoje.
Quando, em 1994, comecei a trabalhar na universidade, eu contava com um computador e uma intranet. Um precário sistema de mails começava a funcionar. Na biblioteca universitária havia um acervo bem inferior a cem mil exemplares de livros, dentre eles alguns poucos dicionários padrão. 14 anos depois, meu computador tem acesso a dezenas de idiomas do mundo e a zilhões de sites e documentos. E a dicionários online, alimentados pelo próprio usuário. ‑ E a biblioteca é a mesma, grosso modo. Ou até encolheu.
Em 1987, a União Européia se convenceu da conveniência do intercâmbio entre suas nações. Criou o programa Erasmus, pelo qual hoje muito mais de um milhão de estudantes universitários estagiam anualmente no estrangeiro. Entre eles, certamente os futuros tradutores. Também os EUA investem no intercâmbio de seus estudantes. Os estudantes asiáticos, particularmente os chineses, estão fortemente presentes nas universidades européias e americanas. Mesmo o Brasil, jovem de 508 anos, está despertando.
Nunca antes houve números tão expressivos de intercâmbio multicultural. Havia o fluxo à metrópole de cada era. Se, antes, bilingüismo e biculturalismo fora feliz constituinte de tradutores, estes são hoje provocados, intencionais, conscientes, mais realizáveis e fáceis. Ou seja, o que antes fora acaso, hoje é intencional, porém idêntico: conhecer a outra cultura para facultar a comunicação, o intercâmbio. Os Agenores mineiros, hinterlandeses e mirabolantes, são hoje espécie não rara, mas extinta.
O que significa isso na prática traducional? Que as coisas nos ficaram mais fáceis. Quer dizer: hoje um tradutor consegue resolver problemas, solucionar dúvidas que ontem não teria conseguido solucionar com o seu conhecimento atual. Ontem era preciso ser mais craque para resolver as questões que hoje se resolve sem ser gênio universal. Não apenas no conhecimento privativo acumulado. Também na capacidade da pesquisa bibliotecária. Procurar na internet é mais fácil do que procurar na biblioteca. Encontrar na internet é mais fácil do que encontrar uma biblioteca de qualidade, eventualmente a centenas de quilômetros.
Ou, numa afirmação bem pessoal: muitas vezes me pergunto como teria eu conseguido traduzir o que hoje traduzo. E a resposta é um silêncio global.

Sensação estranha


Adianto ao leitor desses 5 parágrafos que a sensação sobreviverá a minhas linhas.  Senão não seria estranhez, seria outra coisa, por explicado.  Gostaria de descobrir se essa estranheza é peculiar.

Pois estranho minha aversão a tantas traduções alemãs de ficção latino-americana.  Essa numerosa série de palavras brasileiras e espanholas que entremeiam o texto alemão: os Pedros, haciendas, candomblés, siestas, señoras e pampas que ressaltam, que não se me inserem, feito girafas em pampas ou emas em pradarias; que recusam sua integração no ideário alemão em que o tradutor introduz este teuto leitor que sou eu. A estranheza não vem do fato isolado.  Ela contrasta com a experiência de que a sensação não se me repete com a ficção de outros quatro cantos do globo: América do Norte, Rússia, Ásia.

A única pista que tenho para compreender o fenômeno é que essas palavras em vernáculo original teriam um significado mais próximo, íntimo, para mim - por eu ser também entendedor do português e espanhol - do que scout, Rocky Mountains, Anushka, darling, mammachi e mister, que igualmente não costumam ser traduzidos em ficção vertida para o alemão.

Não bastasse isso, estou fazendo outra experiência neste sentido: ando relendo, em português, o indiano "O deus das pequenas coisas", que em inglês me fascinou demais. Mas o fascínio não está se repetindo!  Evidente que isso poderia se explicar pela releitura [Ai!  Quisera poder voltar atrás no tempo para poder tranqüilamente usar o torneio clássico poder-se-ia explicá-lo, que me soa tão bem em meu ouvido teuto, e tão afetado no brasileiro!], uma vez que a tradução para o português me parece impecável.  Será que o fascínio veio mais da decifração do inglês?  Se foi, não explica tudo, pois sei que as inúmeras associações inesperadas da autora me encantaram a toda hora.

Pois está aí o enigma.  Será como um filme visto após a leitura de seu livro?  E, se for, como ficam os pampas e as siestas em meus livros alemães, que não abro ou logo fecho?



Crônica agraciada com menção honrosa no XIII Concurso Literário da ALPAS.

Livro tem perna


Também o antigo vinil as teve. O CD ainda deve tê-las. o emule e família não as têm, de geneticamente modificados que são.
Das pernas e penas sabe quem ama suas estantes tanto quanto a seus amigos, fazendo por isso a ponte entre seus dois amores. Sangria, ponte de mão única. Bem sabe-o aquele que mais ama a seus livros do que seus próprios amigos, ao estancar com doloroso veto a mesma hemorragia.
A cada livro lido causa-nos o amor à literaturafictícia ou não ‑ o ímpeto de passá-lo a amigos e conhecidos. Ainda que o cremoso folhado circule em círculo vicioso, recompensam-nos ao menos as dicas de outros livros, senão o próprio. Aliás: quanto menor o círculo amistoso, menos vicioso.
Como legítimos donos da encapada voz do autor, contudo, obedecemos a dois beligerantes deuses íntimos: o missioneiro e o cobiçoso. Tendemos a aleijar essa voz bibliográfica, a mantê-la em cadeira de rodas móvel, porém não automóvel. Queremos a missão controlada.
Como sempre, há os do contra. Aliei-me a eles, ao menos um pouquinho. Quando avalio que nem eu nem algum familiar pegará novamente em mãos certo livro no decênio, sigo exemplo de amigo meu: repasso o livro à biblioteca ou a amigos, que por sua vez o passarão adiante. Ou ao sebo, modalidade que a rede de sebos www.estantevirtual.com.br ultimamente oferece aos livros não aleijados até da província. Serviço que instiga a extravagância do missioneiro literário. Ao salvá-los de traças e baratas, salva os pobres livros da vida eterna e permite-lhes criar novos brotos em crânios eternamente desconhecidos. Em vez de presos em prateleiras, retornam à corrente literária!
Até tudo normal entre certa classe social. Mas quando o sujeito é bilíngüe, seus amigos e o livro não? Ah! pega-se o livro e se o traduz para os amigos e demais desconhecidos leitores! Tive a felicidade de encontrar uma editora para dois livros que quis disponibilizar ao público lusófono (A Década Vermelha e A Utopia do Expurgo, ambos de Gerd Koenen). Com a parcela de livros que me convinha como tradutor, pude presentear uma série de amigos e bibliotecas. Novas pontes construídas!
Não é raro apaixonar-me tanto pelo novo livro descoberto que verifico se existe em português. pesquisei pelo e-mail de um autor chinês, e lhe escrevi sem obter resposta. Apaixonei-me pela edição inglesa de O Deus das Pequenas Coisas, mas outro apaixonado se antecipara. Semana passada, apaixonei-me por Leonie Swann, Three Bags Full, que li em alemão. Dá vontade de sentar e verter e verter para que o livro crie ‑ asas.

Crônica agraciada com o 2º lugar no XIII Concurso Literário da ALPAS.